No início de 2020 coloquei-me o desafio de ler 100 livros. Depois veio a pandemia, e no Goodreads (app de onde vem esta iniciativa), gradualmente estava sempre mais avançado do que o suposto. Até que cheguei aos desejados 100 e, para celebrar, aumentei o desafio para 150. No momento em que publico este post, o número de livros que li em 2020 já vai em 155. Como?

Tempo

A primeira reação das pessoas quando refiro este número é a de que elas não têm tempo. Este ano estive envolvido em dois projectos de investigação científica, publiquei artigos em revistas internacionais (4), numa conferência internacional (1), capítulo num livro de especialidade, lancei um livro em self-publishing (“Learnology”), escrevi mais de 10 artigos de opinião por mês ao longo do ano, sou responsável de fevereiro a julho por uma disciplina de mais de 200 alunos, preparei e realizei palestras (3), tenho a logística dos miúdos a meu cargo durante a semana, a limpeza da casa partilhada em família, encontros a organizar, alunos de Mestrado e Doutoramento a orientar. Enfim, tempo?

Sinceramente, não gosto muito de falar sobre o que faço com o meu tempo, e não pretendo com a partilha do que fiz ao longo de 2020 dizer que “sou muito bom”. Não. Apenas que no meio de tanta coisa que tenho para fazer, não foi a falta de tempo que me impediu de ler. Pois, ler muitos livros é mais uma questão de treino e hábito do que outra coisa qualquer.

Gosto

Depois há quem, simplesmente, afirma não gostar de ler, mas, também isso, não é bem uma razão. Há quem afirme não gostar de pensar, mas a própria afirmação é, já em si, um pensamento. É ímpossível não pensar, assim como, quando sabemos ler, é impossível passar um dia inteiro no ritmo normal sem ler seja o for.

Ler, também não é uma questão de gosto, mas — novamente — de treino e hábito.

Vício

No meu caso assumo que, desde miúdo, ler é um vício. Sempre gostei de o fazer e sinto-me mais vazio nos dias em que, por um motivo ou outro, não consigo encontrar o momento de ler. Pode ser por estar doente, ou demasiado empenhado com questões de trabalho. Mesmo assim, — perdoem-me o exemplo — basta uma ida ao WC para voltar ao livro dos 6 que leio ao mesmo tempo, e matar saudades, embrenhando-me por 3 a 5 minutos de novo na história ou assunto. SEIS!?!! Sim, seis livros ao mesmo tempo.

Vários

Conheço muitas pessoas que acabam por ler pouco por acharem que devemos ler apenas um livro de cada vez até ao fim, antes de começar outro. Não vejo a razão senão um preconceito. Explico.

Muitas pessoas são capazes de acompanhar mais do que uma série ao mesmo tempo; ou passar uma tarde a jogar, usando jogos sempre diferentes; ou ainda diversificam a sua alimentação durante o dia por ser saudável. Com os livros é a mesma coisa. Basta diversificar, e a minha experiência é a de que a leitura prolonga-se e cansa menos, sem se perder o fio da história, ou do raciocínio no caso de ser um livro de não-ficção.

Importa que os livros contenham temas diferentes. No meu caso, leio sempre algo de carácter biográfico, um de ficção, um sobre ambiente/ecologia/natureza ou de carácter mais científico, um sobre tecnologia e, depois, dois em formato digital que variam em termos de tópico. Mas há dois truques motivacionais.

Marcador

Há dez anos, eu corri o risco de abandonar por completo os livros em papel. Hoje, depois de ter lido o “Words on screen” de Naomi Baron, ou o “Book was there” de Andrew Piper, entre outros de Maryanne Wolf e até Marcel Proust, percebi que a leitura em papel é mais imersiva, estimula a concentração, bem como outros sentidos (olfacto, tacto) que juntos constroem aquele momento de aguçar da mente. Sim, ler aguça a mente. Mas houve algo que, inesperadamente, aprendi com a leitura em formato digital.

O melhor modo de lidar com o tempo é encontrar a estratégia de deixar de pensar nele. No caso dos livros digitais, como no Kindle com a indicação no canto inferior esquerdo do tempo que falta para terminar um capítulo (ou o livro), deixei-me de preocupar com isso. Como fazê-lo com um livro em papel?

Um dia experimentei colocar o marcador na página do capítulo seguinte e acabei por fazer a mesma experiência. A partir desse momento, o marcador ajuda-me a viver mais o “tempo certo” (kairológico) durante a leitura, do que o tempo cronológico que corre atrás dos eventos. Mas existe um segundo truque motivacional que custa a muitas, mas muitas pessoas.

Redes Sociais

Largar as redes sociais. Quem experimenta fazer um desmame das redes sociais durante uma semana que seja, nota como o tempo se alarga de um modo assustador. Não foi fácil para mim deixar as redes sociais sabendo que era o modo preferencial de outras pessoas contactarem com o que escrevo. Mas não imaginava o quanto tempo libertaria para poder dedicar-me mais à leitura. Contudo, reconheço que o passo final (e natural) é a criação do hábito.

Hábito

Para quem não tem o hábito de ler, a falta de tempo, gosto e motivação serão sempre razões para adiar essa possibilidade. Mas cedo percebi que os hábitos estruturam a nossa vida mais do que podemos imaginar. E, muitas vezes, a razão de não conseguirmos criar um hábito é por colocarmos grandes ambições à partida. É um erro.

Um hábito vai-se criando, pouco a pouco, com pequenos, assertivos e ritmados momentos ao longo do dia, dos dias, das semanas, meses, até que se torna tão parte de nós quanto um sentir físico do estômago com o aproximar-se da refeição. Por isso, quem quiser começar um hábito de leitura deveria apontar para o mínimo tempo que consegue ler, sem pressa, nem que seja por dois minutos. Depois, aumenta, gradualmente esse tempo enquanto sentir que a leitura flui. Um dos pontos-chave é libertarmo-nos do preconceito de que um capítulo deve ser lido até ao fim. Qualquer post-it serve para marcar o parágrafo, sendo preferível para por momentos do que parar de vez.


Chegando a este ponto na partilha da minha experiência fico a pensar se terei respondido à pergunta inicial — o que é preciso para ler 150 livros num ano? A resposta mais simples seria treino e hábito, mas a mais profunda seria: nada. Pois, apesar desta ser a pergunta mais imediata, não me parece ser a mais relevante. Essa creio que seja — por que razão ler 150 livro num ano? — o que me faz recordar a resposta de George Mallory (primeira pessoa a cometer a loucura de subir ao Monte Evereste) à pergunta sobre a razão de tamanha empreitada — «because it’s there.»

Ler é uma capacidade criada por nós, não uma faculdade que possuímos biologicamente. É uma capacidade que dá profundidade ao modo como nos entendemos e contemplamos o mundo. É uma capacidade que nos abre novos horizontes e a uma dimensão da vida para além da sobrevivência concreta do quotidiano. É a capacidade que sacia a fome e o desejo de saber. É uma capacidade que nos impede de estarmos sós, ou isolados, mas desperta a relacionalidade na mente para nos motivar a vivê-la concretamente com os outros.

Não encontro, para já, outra razão para ler se não a simples capacidade de o poder fazer. A longo prazo, o resultado parece-me ser o puro gozo de ler. Puro. Gozo.