Vivemos num mundo que procura eliminar a fricção. É cada vez mais fácil para qualquer pessoa neste planeta poder expressar a sua opinião sobre qualquer coisa e ter a sensação de ser ouvida. E, depois das alterações culturais que esta pandemia realizou no modo de comunicarmos, mais ainda se nota como um mundo sem fricção pode tornar-se num mundo superficial onde vinga a desinformação.

A comunicação assíncrona que nos dá espaço à reflexão é cada vez mais convertida em comunicação síncrona, captando a nossa atenção a todo o momento. E a questão que surge é a de encontrar a velocidade certa para comunicar, sem comprometer o equilíbrio entre o saber, e a compreensão daquilo que pensamos saber.

Foto de Solen Feyissa em Unsplash
Foto de Solen Feyissa em Unsplash

 

Cal Newport é um Professor de Computação cuja obra literária relacionada com a produtividade e o trabalho tenho acompanhado com algum interesse. Depois da sua proposta de investirmos na concentração máxima (Deep Work), e no minimalismo digital, este mês lançou um novo livro intitulado “Um mundo sem email.” Curioso como num artigo a 25 de Abril de 2019 para o Jornal Económico, o professor João Atanásio dizia o que muitas pessoas sentem de que «não conseguimos imaginar um mundo sem email, que permite contactarmos com pessoas que estão a milhares de quilómetros de distância.» Aliás, se não fosse o email, ficaria comprometida a partilha de pensamentos com o Jornal Económico, ou até estes que partilho através do Sete Margens. Mas Cal Newport faz, precisamente, essa proposta, e argumenta como o email no contexto da nossa comunicação torna-se um tiro no pé.

O email pretendia resolver um problema de comunicação no mundo profissional nos anos 1980 e 1990, introduzindo um modo de comunicar com baixa fricção. Não sei se alguma vez experimentaram fazer snowboard, mas quando passamos de um terreno como neve compactada para gelo, há uma diminuição significativa da fricção, e o resultado pode ser a perda do controlo sobre o nosso movimento. Com o email aconteceu algo semelhante.

Newport nota que do email nasceu uma atitude mental de colmeia hiperactiva (hyperactive hive mind) que define como um fluxo de trabalho centrado numa conversação contínua alimentada por mensagens sem estrutura ou agenda, entregues por ferramentas de comunicação digital e serviços de mensagens instantâneas. E quem procura o espaço para pensar um pouco mais sobre as coisas que recebe, e não responde logo, gera desconforto no outro e a sua escolha pode ser entendida como ofensiva — «não respondeste ao meu email. Não viste?» — em tom de “não gostas de mim?” ou “não me dás importância?”

Comunicar é humano por ser o modo como evoluímos. Mas a comunicação ininterrupta retira o espaço e o tempo aos momentos de reflexão mais profunda necessários ao trabalho de elevada qualidade que desejamos realizar, ou ao conteúdo profundo que queremos comunicar.

João Atanásio, como muitos de nós, sente que existem tecnologias como o email sem as quais não conseguimos passar, mas Cal Newport propõe uma alternativa e demonstra essa possibilidade, justificando com base naquilo que designa por Princípio do Capital da Atenção.

O ser humano é incapaz de dividir a sua atenção. Quando alguém pensa que trabalha em modo de multi-tarefa (multitasking), na prática, trabalha em modo rápido de troca-tarefa (switch-tasking). E a razão é biológica porque o nosso cérebro está feito para trabalhar, em profundidade, numa coisa de cada vez. Por isso, quando mudamos, sistematicamente, de tarefa, sentimos um cansaço cognitivo que não só afecta a profundidade daquilo que pensamos, como a riqueza relacional gerada pela comunicação dispersa e superficial que acabamos por realizar para — ”atender a tudo” — como alguns pensam.

O Princípio do Capital da Atenção afirma que «a produtividade do sector do conhecimento pode aumentar, significativamente, se identificarmos os fluxos de trabalho que melhor optimizam a capacidade cerebral humana de, sustentavelmente, adicionar valor à informação.» E, na prática, o excesso de informação que circula leva a uma gradual diminuição do valor que lhe damos quando a comunicamos, e do valor que os outros lhe dão quando a recebem.

Os comentários que oiço, ocasionalmente, de pessoas que conheço, revelam o cansaço que sentem em relação à comunicação superficial que experimentam em canais que aderiram para comunicar mais profundamente as suas experiências, como, por exemplo, os grupos de WhatsApp. Mesmo nos emails, soube de pessoas quem viveram alguns danos relacionais pelo descontrolo de emails que recebem, sendo inseridas em listas criadas por pessoas amigas que lhes enviam informação que não querem receber, e não sabem como lhes chamar à atenção sem as ofender.

Um mundo sem email pode parecer impossível para muitos, mas só com uma ideia disruptiva podemos quebrar os ciclos de superficialidade em que estamos metidos pela enorme capacidade que temos de comunicar sem fricção. O modo de sair desta rampa gelada deslizante, e evitar cair do abismo, seria, simplesmente, criar alguma fricção.

Ao aperceber-me de que a minha velocidade estava a tornar-se vertiginosa, virei a tábua de snowboard para travar e evitar o pior. Nessa travagem abrupta dei uma pirueta no ar, caí de costas, e fiquei uns segundos sem fôlego. Mas depois de um “au…”, e de um “oops” dos meus amigos que à distância assistiram a esta acrobacia, parar foi a solução para viver.

Parar para comunicar de um modo mais profundo, pode implicar gerar um pouco de fricção, mas aumenta a qualidade daquilo que comunicamos e, com isso, a riqueza relacional que cria a cultura de proximidade que o mundo precisa tanto neste tempo.