Havíamos terminado a discussão do projecto de tese de um aluno de Doutoramento co-orientado por mim. A minha colega convidou-me a ver um presente que lhe tinham oferecido e que estava no seu gabinete. Entretanto, o nosso aluno chegou ao gabinete para dar à minha colega um presente de Natal. Depois, virou-se para mim e disse que tinha, também, um presente, mas não era físico. O que seria?

Foto de Gaelle Marcel em Unsplash

Para compreenderem o seu presente preciso de voltar um pouco atrás na história. Regularmente, eu e os meus alunos encontramo-nos uma vez por semana para falarmos sobre o progresso da sua investigação. No caso deste aluno, numa dessas reuniões, partilhei a ideia de Howard Gadner de que uma pessoa torna-se especialista num assunto se estudar 2h por dia de matéria nova durante 10 anos. É claro que um Doutoramento não deveria durar tanto tempo, mas convidei-o a fazer essa experiência durante este período de formação avançada. Ele resistiu. Não tinha tempo.

Steven Pressfield no seu livro A Guerra da Arte fala da Resistência como um personagem que faz tudo para minar o nosso trabalho criativo, e impedir-nos de fazermos aquilo que deveríamos fazer e explorar todo o nosso potencial. Também existe a Resistência ao nível de um Doutoramento, segundo Pressfield, onde é o nosso ego/auto-proteccionismo/preguiça/orgulho etc. que rejeita todas as sugestões que nos fazem para melhorarmos o nosso trabalho.

No caso do meu aluno, os projectos em que estava envolvido consumiam muito do seu tempo e atenção. Ou outras coisas que desconhecia e poderiam ser do foro pessoal. Mas, naquele dia, depois de ter entregue o presente à minha colega, disse-me — «o meu presente, professor, não é material, mas o compromisso de ir em frente com o desafio que me fez de estudar 2h por dia de matéria nova durante o Doutoramento.» Fiquei surpreendido, sem jeito, e a pensar.

Nós referimo-nos a “presentes” no período de Natal e, noutros contextos, referimo-nos a “ofertas”. E ponderei sobre a diferença.

Posso pensar que “presente” provém da palavra presença. Isto é, dar um presente a alguém pode ser interpretado como fazer-se presente a alguém. Deste ponto de vista, dar um presente acaba por ser mais significativo do que fazer uma oferta. Pois, num presente está um pouco do relacionamento que temos (ou queremos ter) com essa pessoa.

O “presente” que este aluno me deu foi o seu compromisso. Não é material, mas é tão significativo! Antigamente não havia necessidade da quantidade de contratos que existe hoje porque bastava a palavra de honra dada entre as partes. Ou seja, havia uma seriedade, confiança, genuidade, e responsabilidade nas palavras de compromisso ponunciadas que não levariam ninguém a desconfiar da sua veracidade. Hoje, temos contratos pela cultura de desconfiança que permeia muitos dos nossos relacionamentos.

Quando damos um presente a alguém procuramos ir ao encontro daquilo que o outro precisa ou deseja. O compromisso que o meu aluno me deu como presente é algo que eu desejaria, de facto, mas, neste caso, pelo carácter imaterial e profundo do presente, também ele (ou sobretudo ele), é o grande beneficiário daquilo que me oferece. Há um teor de reciprocidade neste presente dado, mas fê-lo a pensar em mim, ou nele próprio? Creio que o fez a pensar em mim que penso nele, e no desejo que tenho de que explore todo o seu potencial (ele conhece-me bem a este respeito). Por outro lado, é um presente exigente porque não se pode pôr numa prateleira, mas acompanha-lo-á todos os dias. Ou seja, todos os dias irá ter-me presente quando dedicar as suas 2h a estudar matéria nova.

Os presentes imateriais são, actualmente, muito desvalorizados, talvez por vivermos numa cultura tecnológica onde tudo o que tem valor é palpável. Mas uma vida profunda não assenta no que é palpável. E, sem essa, de que serve tanto esforço, empenho, e dedicação?

Os presentes imateriais são originais porque variam de pessoa para pessoa, e inesperados porque nos apanham de surpresa. No meu caso, quando o vi a puxar do saco um presente para a minha colega fiquei atrapalhado por não ser muito o tipo de pessoa que se sente confortável em receber presentes que não sejam de familiares ou amigos, por muito genuína que seja a intenção. E quando ele me surpreende com o seu compromisso fiquei mais descansado e enriquecido.

Poderia pensar que aquela ideia foi antes o resultado de ter ficado encavacado por ter um presente material para a minha colega, e não contar que no momento disponível para o entregar, também eu estaria presente. Então, o compromisso foi a primeira ideia que lhe ocorreu para se desenbaraçar da situação. Mas, ainda que tenha sido assim, o resultado final foi original, inesperado e mais profundo do que se tivesse dado um presente material.

Enquanto se aproxima o período de Natal, muito do nosso tempo e atenção estará focado nos presentes materiais a dar uns aos outros. Mas, talvez valha a pena gastar algum do nosso tempo a pensar nos presentes imateriais que podemos oferecer. Pode ser uma boa conversa através de um telefonema.

Pode ser um pensamento escrito numa carta com a nossa caligrafia.

Pode ser através da criatividade de uma refeição diferente.

Certo será que o compromisso de estar presente nestes momentos de festa, apesar de imaterial, possui um seu valor original, inesperado, e incalculável.