Se ler não é algo natural em nós, como é, por exemplo, andar, menos ainda é escrever. Enquanto ao ler, acolhemos os pensamentos dos outros, ao escrever, temos de expressar os nossos pensamentos e sujeitarmo-nos à leitura que os outros fazem desses. Ao reflectir sobre o ano de 2020, contei 100 000 como o resultado da soma de palavras nos artigos de opinião que escrevi sobre as mais diversas temáticas. Para uns será muito, para outros será pouco, mas o que revela não é a quantidade, ou a qualidade, mas o hábito.

A cultura humana deu um passo evolutivo notável com a emergência da oralidade, isto é, a capacidade de nos exprimirmos através das palavras que pronunciamos uns aos outros. Como dizem o médico Andrew Newberg M.D., e o jornalista Mark Waldman, em ”Words can change your brain”, «os modos como escolhemos as nossas palavras podem melhorar o funcionamento neuronal do nosso cérebro. De facto, uma só palavra tem o poder de influenciar a expressão dos genes que regula o stress físico e emocional.» Quantas vezes o dia correu-nos bem com “aquela” palavra que alguém próximo nos disse? Ou quantas vezes aconteceu o contrário? De um modo, ou outro, penso que todos temos a experiência de como, pela oralidade, as palavras influenciam o nosso estado emocional, com repercussões sobre o estado físico. Mas, com a escrita, damos um passo evolutivo.

Ninguém vai à escola para aprender a falar. Em nossas casas, cria-se o ambiente natural para isso. Nas escolas aprendemos a ler, a escrever, a interpretar, em suma, a pensar. Mas ao longo do nosso percurso, o que se nota é a diminuição do tempo que as pessoas dedicam à leitura e, mais ainda, à escrita. Mas, como diz o jesuíta e historiador americano Walter J. Ong, no seu livro ”Orality and Literacy”, «escrever (…) é, essencialmente, uma actividade de desperta a consciência.» Por isso, para o ser humano, escrever está muito para além de nos tornar escritores, mas creio ser um acto que aprofunda a consciência que temos de nós próprios, dos outros, e do mundo que nos rodeia.

Não é que isso não se consiga, de certo modo, com a oralidade, pensando, sobretudo, nas pessoas que não sabem escrever, mas o que os estudos nos dizem é que se aprofunda mais a consciência com a escrita. Aliás, diz ainda Walter Ong que «a própria reflexividade da escrita — forçada pela lentidão do processo de escrever quando comparado com a oralidade, assim como pelo isolamento do escritor quando comparado com o actor oral — encoraja o crescimento da consciência a partir do inconsciente.» Por isso, escrever é um acto de crescimento pessoal acessível a todos. Mas requer o hábito.

Um hábito cria-se com uma prática deliberada durante 70 dias. Existem muitas técnicas para o fazer, mas nenhuma dispensa o mais importante: a razão. Apesar de ser suficiente para mim, aprofundar a nossa consciência parece ser uma razão pouco pálpável. Porém, todas as decisões que tomamos na vida, sejam pequenas ou grandes, dependem da nossa consciência. As escolhas que fazemos e as que nos sentimos incapazes de fazer, dependem da nossa consciência. Por vezes, o passo entre a situação em que nos encontramos, e uma situação melhor que desejamos, depende da nossa consciência.

A criação de um hábito é uma prática para chegar à consciência plena, isto é, a um estado relacional da consciência no qual estamos activamente cientes do presente, questionando coisas coisas e trazendo-as para o contexto em que vivemos.

No caso da escrita, as páginas matinais foram o passaporte para criar o hábito de escrever todos os dias. Neste momento, iniciei o volume XII, sendo que, o primeiro volume data de 27 de Novembro de 2018. Portanto, há pouco mais de dois anos que escrevo todos os dias, três páginas daquilo que me apetecer escrever no momento, e só no último ano creio ter começado a sentir os seus efeitos, precisamente, pelas 100 000 palavras escritas em 2020.

Talvez sintas um entrave interior a iniciar este hábito, e explorar um aprofundamento da consciência através da escrita, por achares que não sabes escrever, ou não tens nada de interessante a pôr por palavras tuas, ou, simplesmente, não gostas ou tens paciência. Tudo isso não passa da voz secreta da Resistência a minar a tua real capacidade e potencialidade de evoluir como ser humano que está sempre a aprender.

Lembro-me de que a experiência de escrever sem filtros, bem ou menos bem, com sentido, ou totalmente ausente de sentido, não começou com o volume I das páginas matinais, mas um pequeno caderno para que as páginas fossem mais pequenas e chegar ao fim das três habituais fosse mais rápido. Ou seja, comecei com o pequeno — páginas pequenas, poucas palavras, poucos pensamentos — mas, gradualmente, crescia o desejo de escrever mais e por mais tempo. Ninguém começa o hábito de correr com uma maratona, mas uma simples volta pelo bairro onde vive. Do mesmo modo, ninguém começa o hábito de escrever com um caderno grande de 300 páginas, mas umas simples três páginas de um caderno pequeno com o que sente, pensa e lhe passa pela cabeça naquele momento.

Podem ser 10, ou 100 palavras no dia-um, mas ao fim de algum tempo, o seu acumular chegá às 100000. É isso que conta? Nem por isso. O que conta é a impressão de uma maior noção da realidade do mundo à nossa volta que essas palavras nos dão sem nos darmos conta disso. E uma maior consciência da realidade é a génese das escolhas que trazem valor a uma vida cada vez mais profunda.